sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Sobre África e ensino no Brasil


Prezadas senhoras e prezados senhores,
Desejo compreender melhor a aplicação da lei 10.639/03, que prevê o estudo de História e Cultura Afro-brasileiras nas escolas de nível básico do Brasil, particularmente no estado do Rio de Janeiro, onde vivo e trabalho atualmente. Sou professora de Ensino Médio – embora esteja desvinculada de instituições educacionais no momento – e sou aluna do doutorado em Literaturas Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Minha pesquisa tem foco nas literaturas africanas dos países de língua oficial portuguesa.
Transitando entre contextos tão diversos, percebo uma lacuna entre o que estudamos na Universidade e o que pretendemos lecionar acerca da África ou da cultura de herança africana no Brasil nas escolas básicas. Tive o cuidado de ler os livros didáticos adotados para o ano que vem, 2016, e encontrei, confesso que com alguma frustração e inquietação intelectuais, algumas poucas páginas com referências vagas a escritores africanos e uma breve descrição: quem são, quando nasceram, de que país são, que literatura fazem. Este último ponto, “que literatura fazem os escritores”, talvez seja o mais carente de cuidados. Em primeiro lugar, estamos tratando de 5 países de culturas absolutamente diversas e não é possível resumir as obras a um ou dois poemas e excertos de prosa sem contextualizar, histórica, cultural e politicamente a situação de cada um dos países: Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Além da falta de material mais consistente sobre a imensidão do continente africano, há uma tentativa de aproximação da nossa cultura afro-brasileira com a África, pelo viés, já em fase de contestação no mundo acadêmico, do “exótico”. Devo esclarecer que temos, de fato, duas linhas a se avaliar concretamente: uma, o que são as literaturas dos cinco países africanos que têm a LP como língua oficial e, outra, o que é o movimento literário afro-brasileiro (bastante diferenciado do que é a África e os estudos da África de LP em si).
Vivi durante quatro anos em São Tomé e Príncipe como Leitora no Instituto Superior Politécnico do país, hoje, Universidade de São Tomé e Príncipe. Também tive a chance de ir a Cabo Verde em diversas ocasiões. Voltei às salas de aula brasileiras em 2014. Por isso, devo, como princípio ético que adoto em minhas pesquisas, alertar para o reducionismo que se faz de tais culturas nos manuais didáticos que circulam no país atualmente no que diz respeito, mais especificamente, à literatura.
Gostaria de saber como contribuir para que pesquisas mais apuradas e aprofundadas sejam feitas, a fim de se empreender a produção de um material didático digno da realidade daqueles países africanos aqui mencionados e da realidade dos estudos afro-brasileiros. Como pesquisadora, não posso compactuar com o reducionismo a priori mencionado praticado por escritores renomados de livros didáticos. 
Ademais, há falta de preparo e estudo de professores para lecionarem tais conteúdos no Ensino Básico, mais precisamente, no Ensino Médio. Com isso, reitero a sensação (ou a certeza) de que temos uma lacuna entre este e a Universidade.
Como fazer a ponte entre os saberes construídos no mundo acadêmico e o processo da educação básica, sem nos deixarmos levar pela armadilha de que há uma África apenas e “uma” cultura africana a ser estudada? Essa tem sido a minha grande preocupação e, por isso, envio esta carta, certa de que ainda há tempo de aprofundar os estudos e as pesquisas e dar mais atenção ao grande passo que foi a implementação da lei 10.639/03.
Cordialmente, subscrevo-me,
Naduska Mário Palmeira
Rio de Janeiro, 09 de dezembro de 2015.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Reencantamentos

Pensava em meta-dialogismo. Nem sei se isso existe e sequer vou procurar. Virginalmente, compreendo o mundo de uma forma mais encantada. Tudo está interligado e encantado nesta vida. Uma conversa de quase 7h ininterruptas. Abri o encarte dos discos que até então só ouvia e li as letras. Tive insônia. Depois, comecei a colocar palavras do santome nas letras: couberam lindamente. Já intuía que uma parte de minha tese estava pronta: a epígrafe. Agora, tenho certeza. Encantada. Quinta, insônia. Reli um conto do Tutaméia. Encontrei as letras das músicas e o santome ali, em laços! Que encanto! Insônia. Sexta, continuei o estudo de um livro difícil, teórico, desestabilizador. Excelente. A cada página, precisei buscar instrumentos externos para me alimentar do texto. Dormi algumas horas, sonhei com a minha prima. Insônia. Sábado é dia de sair. Domingo, mais leituras de JB e o monstro freudiano na minha mão: "Luto e melancolia". Aceitei o desafio. O tempo que penso ter dormido, estive com a minha prima ao pé de mim. Levantei, exausta da noite encantada. Coloquei o disco mais tocado em minha casa nas últimas 4 semanas. Fiquei feliz e tomei café. Próximas leituras: "Totem e tabu" e "O arquipélago da insônia" (ilhas e insônia se juntaram no final deste dia, conexão astral, mundo encantado). Termino o dia com muito sono, já sei que terei insônia, ouço a sensacional "Irreconhecível". Penso no Chico Buarque, que não quebra não porque é macio. Sinto-me mole. Sucumbo ao encantamento. Percebo o mundo meio em suspensão. Travessia. Não lamento o assassinato de Diocleciano. Salto do materialismo enlouquecido para uma certa brecha de mim macia, que deixa entrar um divino, inominável. E amo profundamente o equívoco dos meus encontros. Travessia outra vez. Literatura é a força que me move. Sigo macia e com pés levemente fora do chão, contudo, apesar da insônia, divinalmente maravilhosa e leve. Tudo, tudo, tudo devido ao equívoco passado de ter lido o "Grande sertão". Tudo tudo tudo devido ao equívoco próximo de não ter me calado por alguns minutos. Tudo por causa do equívoco de topar na beira da estrada - ou da terceira margem do rio - com músicas encantadas, divinas. Que maravilha é o princípio da existência!

Acabo de escrever esse texto e recebo outro, de Judith Butler, a quem aludi aqui como inquietante e desconcertante. Não vou dar nós na vida. Coincidência?

sábado, 7 de novembro de 2015

Você

Gostaria de falar de você. Mas não de você, especificamente, mas do você geral que anda aí pela boca do povo (não vou falar do você linguístico da nossa língua brasileira). Passeando, ontem, pelos jornais marginais, ouvi falas do Jean Wyllys e li os comentários sobre elas. Sempre tem um sujeito, que pode ser você, que faz o seguinte comentário (porque você, claro, não ouviu ou leu as falas até o fim, normal na internet, em que recebemos uma matéria por segundo dos, maniqueístas esquerdistas e direitistas, pois que é assim que andamos nós, e não apenas você, a analisar o país), retomo, o seguinte comentário: "chupa, votou na Dilma agora aguenta. Chupa, foi você que colocou o Eduardo Cunha na Câmara dos Deputados, agora aguenta". Bem, você também fala coisas do tipo: "Chupa, votou na Dilma, agora se ferra." A triste falta de análise crítica que rola pelas redes, provavelmente (ou com certeza), influenciou as eleições de 2014 e influencia, hoje, comentários perigosos e de incitação ao ódio (porque o Jean Wyllys é homossexual e ex-BBB, logo, só fala merda - é o que você, que não relativiza a direita, diz). Já me apontaram o dedo e disseram: você votou na Dilma, uma mulher tão inteligente, mas maluca, né? E esse você agora sou eu. Não vou me defender por ter garantida a minha liberdade de voto. As acusações é que são indefensáveis. Mas há um fator interessante aí: você (eu) não votou na Dilma Rousseff porque eu não tenho domicílio eleitoral no Rio, mas fiz campanha para ela ganhar e sou solidária a ela pelas ofensas e crimes cometidos contra a pessoa-você Dilma, não à figura pública ela-Dilma. Eu, agora eu mesmo, repudio aqueles panelaços desrespeitosos, sexistas, fruto de uma ignorância cívica sem precedentes. Bem. Você anônimo deve saber que se falar para um outro você que não tem pão para alimentar a família que se ele "ungir" um caroço de feijão, "abençoar" um vidrinho de azeite, fizer a corrente da prosperidade (prosperidade de que só desfrutam alguns pastores neopentecostais) ele vai levar uma vida melhor, o cara vai ungir o caroço e beber o azeite. Mas você, Sudeste e Sul brasileiros, centros econômicos deste país, você finge que não sabe que lá, um pouco mais acima do mapa do Brasil, há pessoas que vivem em condições desumanas, há escravos (ohhhhhh, você enlouqueceu, Naduska), há falta de água e luz e a bolsa família tirou essa gente da linha abaixo da miséria e deu a elas um pouco mais de otimismo e de dignidade, que você, de uma classe um pouquinho melhor, que não conta moedas pro pão, chama de assistencialismo de campanha. Não estou defendendo o PT. Que isso fique claro para você. Foram os "você" anônimos também, mas por outras razões diferentes de você, covarde, que destila racismo, xenofobia, homofobia, misoginia, orgulho hétero, filho de estupro, contra a pílula do dia seguinte, desrespeita os direitos e os corpos das mulheres, massacram a comunidade LGBT; você que fuma seu baseado em casa deboas e cheira seu pó - pobre não usa cocaína porque é droga cara - e faz campanha contra a legalização e controle de drogas ilícitas, foram os primeiros "você", os "paraíbas", que não nos deixaram cair em um buraco ainda maior, porque embora você os chame todos de "paraíbas", porque você não conhece o Nordeste, porque você não respeita os moradores do Acre, enfim enfim enfim... você, anônimo dos crimes cibernéticos (igualmente anônimos) incita, diariamente, desde a sua torre de marfim, o ódio ao você-pária, você-margem que, se não existisse, sua rua seria um nojo, não haveria quem dirigisse o seu carro por salários desonestos, não haveria quem te servisse nos restaurantes por salários que não pagam o prato que você come. Você que bate em mulher e justifica - e pior, nada acontece com você -, você que quer desmantelar uma conquista de anos de desfrutarmos de estado laico - porque você é conservador, bate em mulher, mas é ela que procria, porque gay não procria, adota crianças abandonadas (certamente crianças que também vão ser gays, porque os pais são gays); você que acredita no determinismo do século XIX (todos os moradores de favelas são bandidos) ou você que flerta com a pureza fascista (bandido bom é bandido morto), você que se dá o poder de amarrar um ser humano negro, nu, em um poste porque ele assaltou um cara como você, que tem mais, muito mais que ele, você que acredita que "é isso mesmo, tem que amarrar bandido". Você não sabe o que está falando. No final de um livro polêmico de José Saramago, escritor português morto em 2010, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Jesus, já crucificado, diz pro além: Ele não sabe o que faz. Ele, com maiúscula, diz respeito à divindade construída desde do advento do cristianismo na nossa sociedade, pretexto, entre outras coisas mais, para ganhar (ou, se usarmos o conceito mais exato, roubar) uma grana explorando os animais africanos (pessoas negras) e os animais americanos (índios). Você está ajudando o Brasil a voltar no tempo, antes mesmo de o Brasil ser Estado (sabia que Estado é um conceito construído pelo poder?) Ou você acha que Cabral já "descobriu" o Brasil Estado-Nação ocidentalmente direcionado (um parêntese para lembrar que os mesmos ocidentais partiram a África como um bolo e agora não dão conta de discutir os problemas de lá e, que bom, que os deixem! As guerras na África são, majoritariamente, fruto do imperialismo ocidental e sua inerente crueldade. Basta observarmos a Europa fechando a cadeados as fronteiras para pessoas que buscam modos de viver com dignidade em um espaço de paz (?)) Ops. Como já postou um amigo meu, falta História na biblioteca de você, mas não pra enfeitar o seu lado pseudointelectual de um cara cheio de livros. Falta estudar História, dar aos menos favorecidos a chance de conhecer a História. Se você, da torre de marfim, tem o que tem hoje e acha pouco (casa, comida, escola pros filhos, empregada doméstica, motorista e sei que lá), você deveria parar de chamar, pejorativamente os nordestinos (salve este povo lindo) de paraíbas e olhar para você, para o seu umbigo. Aproveita: chupa o seu umbigo. Este post não é um prontofalei. É só pra dizer que você não é a nação, a esquerda não é a Dilma, a direita não é o Aécio, o governo é uma teia de poderes dos quais sequer temos ideia sobre como funciona.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Benfeitoria (Crowdfunding)

Só pra ir dormir tranquila: há benfeitoria para doutorandos? Se houver, garanto, na dedicatória da minha tese, nomeação de e homenagem a todos que contribuírem para uma pessoa, que estuda a arte da palavra, conseguir chegar ao fim de uma jornada de estudos que dura 4 anos práticos e muito mais de 50 anos de luta, estudos, ativismo, compromisso com uma verdade não imposta pelo status quo, laços de gratidão com um país africano de língua oficial portuguesa que estudo (vai no Google e procura São Tomé e Príncipe), além de uma roda de choro, socopé e uma apresentação da Tragédia do Marquês de Mântua, o Txiloli, expressão máxima da cultura da ilha de São Tomé e o Alto de Floripes, da ilha do Príncipe. Revelarei que a língua santome, uma das outras quatro línguas faladas nas ilhas de aproximadamente 180 mil habitantes, possui um dicionário livre: Livlu-nglandji santome-putugêji, organizado pelos pesquisadores Gabriel Araújo (USP) e Tjerk Hagemeijer (UL). Também oferecerei chocolates (os melhores do mundo) produzidos na ilha de São Tomé e café puro e saboroso, plantado mão a mão por homens batalhadores da ilha do Príncipe, muitos deles filhos de escravos (chamados eufemicamente "contratados") "levados" pela mão do colonialismo português, retirados de sua pátria Cabo Verde, com promessas de retorno, mas que jamais voltaram a pisar em sua casa-país. Está valendo! Crowdfunding para doutorandos que ralam na vida pra não ter um trabalho mofando nas prateleiras da Academia, esta, em tese, produtora de fazeres para o mundo, criadora do nome "pesquisador" para os doutorandos, até bem intencionados, falarem de assuntos a que o povo, o povão mesmo da pátria educadora, nunca terá acesso enquanto tivermos uma universidade que não dialoga com a escola e não se mobiliza para chutar o pau da barraca e chegar lá perto de quem precisa crescer. Vamos falar de Said e da releitura brilhante que ele faz de Gramsci do intelectual orgânico. Está lançado o desafio. Crowdfunding para pesquisadores orgânicos e preocupados com o futuro do país.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Algumas impressões acerca das provas vestibulares da PUC/2016

Este não era um texto que eu intentava publicar, no entanto, como acredito que a palavra não é estéril, ela está impregnada de ideologia e política, acredito, consequentemente, que a palavra solitária é egoísta, por isso ela precisa de interlocução. Por isso escrevo. Porque gosto e porque dominar a palavra é uma forma de poder - do bem - para uma professora de redação, como eu.

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(Trilha sonora: De ponta a ponta tudo é praia-palma, do Thiago Amud) 

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Bem, antes de mais nada gostei dos textos das provas. Claro que tenho algumas críticas, e é sobre elas que escrevo (boas ou menos boas, digamos assim).
Penso que estamos em um mundo onde não pode mais haver muros que separem as disciplinas das humanidades no Ensino Básico. Como professora de redação, tenho o privilégio de transitar entre as mais diversas áreas, mas nem sempre posso (não tenho propriedade nem o repertório de outras ciências humanas) dissertar sobre questões muito específicas ligadas às áreas da história, história judaica, geografia, sociologia, filosofia - esta é uma questão ética. Nesses campos, eu sou uma pesquisadora amadora (no bom sentido, daquele que ama), porque não separo a Literatura das demais áreas do conhecimento das humanidades. Às vezes, é bom dar nome às coisas e ao que somos, para não corrermos o risco de sermos subjugados - e corrermos o risco delicioso de sermos criticados! Eis quem sou: (embora não seja uma mulher de vaidades acadêmicas): sou, além de professora, aluna-pesquisadora da UFRJ. A mim foi dado o privilégio também de falar (a burocracia/um título pode nos beneficiar ou legitimar nossas falas em certas situações). Quando leio meus alunos, eu o faço com o respeito à dignidade humana e à dignidade de todos; sei seus nomes e sobrenomes, envolvo-me com eles, coloco-me num lugar de aprendiz outra vez, e Guimarães Rosa que me salve: mestre é aquele que, de repente, aprende.
A prova da PUC-Rio veio para comprovar como as barreiras/fronteiras das ciências humanas estão, paulatinamente, tornando-se mais fluidas com o decorrer do tempo e com os avanços dos estudos da teoria pós-moderna e, ouso dizer, pois que Benedict Anderson foi mencionado na prova, das teorias pós-coloniais. E me surpreendi com a qualidade dos textos das provas de Literatura Brasileira, Língua Portuguesa e Redação, pois esses saberes, sobre os que já falei, estavam todos lá, "indissociados", indissociáveis (vide as referências ao Iluminismo e à Revolução Francesa, ao Estado Nazista e aos Direitos Humanos, ao Brasil da década de 1930 e às mazelas do cheiro da ditadura que já pairava no ar da terra brasilis e da irmã lusitana, certo?).

Pensar em ética - tema de uma das redações - é analisar a humanidade como ela se nos apresenta hoje. Nesse sentido, a prova de redação trouxe um tema bastante contemporâneo, que está na crista da onda dos estudos acadêmicos (o que não é mais do que uma representação do que estamos vivendo hoje política, social e economicamente). A prova de Língua Portuguesa segue sempre um modelo há algum tempo e eu penso que ela trabalhe justamente com as possibilidades de lidar com a língua, virá-la de cabeça pra baixo, estender o repertório linguístico dos nossos alunos, compreender que não existem sinônimos exatos (e aí esta a riqueza da palavra!) e que o sujeito pode e deve escolher o seu registro de escrita. Na literatura, não faltaram diálogos com a sociologia (repare-se os textos de Graciliano e a relação que se pede com o Brasil - fim das barreiras didáticas que separam a literatura por períodos definidos, caducos e estanques! Que sucesso! Olavo Bilac aparece fora de padrões fixos do que se chama Parnasianismo no Brasil!) e a maravilhosa carta de Mario para Tarsila, também realçando a importância do movimento iconoclasta da semana de 1922 para os estudos das humanidades em geral.
Não foi só a literatura o alvo dos modernistas de 1922, mas a estrutura social do Brasil, as estruturas econômica, cultural, linguística, etnográfica... Ou seja, a carta do Mario é atemporal. Isso vai muito além do que chamamos de transdisciplinaridade: penso que estamos falando de interlocuções, diálogos; de ciências que intentam romper o abismo entre a escola básica e o ensino superior. E o que há na realidade é exatamente o abismo, de uma maneira geral. Nós todos sabemos que o ensino público é estanque, os professores param de estudar, devido à demanda do mundo capitalista pela sobrevivência, baseiam-se em manuais amarelados, são mal-pagos e banalizados pelo sistema, que transforma a educação em instituição financeira... Pena! E a Universidade não conhece a Escola Básica. Ela vê, do alto de sua sabedoria inquestionável, o caos da educação, e, da sua Torre de Marfim, aparta-se e omite-se (tem sido a regra, mas já há exceções, como os estudos das literaturas marginais, sobre as quais pesquisadores da UFRJ e outras IFs promoverão um seminário, que divulgarei aqui no final do ensaio).

Bom, na prova de redação, cujo tema era ética, abria-se uma discussão que convidava o sujeito a falar de alguma experiência: aqui, falamos de empirismo. Alguns alunos me escreveram dizendo que não souberam bem como fazer o diálogo com experiência e teoria.
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Pausa para reflexão e ir passar o carnaval na Mesopotâmia.
 
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Refletido: ainda, nós, aqui na base do sistema educacional, temos de discutir (destruir barreiras!) entre teoria e prática, desmistificar a redação do ENEM (o mito é o nada que é tudo, já diria Pessoa, com seu cinismo lírico corrosivo!) e termos clareza de que a prática corpo a corpo professor-aluno entre os muros da sala de aula deve extravasá-los, sempre. E só nós, apenas nós, os que estamos neste corpo a corpo, podemos falar sobre ele (mais um privilégio, que não cega - como sói acontecer aos poderosos apáticos, pois que estão muito acima da nossa voz -, mas, ao contrário, expande o olhar). Isso iria longe!
Voltando ao tema: O texto da Marilena Chauí é apenas interessante, mas está num nível de compreensão, para alunos advindos do Ensino Médio, ótimo (mas que aluno é esse, já pensaram sobe isso?) No entanto, os conceitos são difíceis.
E nosso papel? E a nossa voz, que doamos diariamente, por afeto e amor, àqueles sujeitos chamados alunos - cheios de luz? Não damos aula por dinheiro, creio eu, ou deveríamos voltar a Marx e discutir a mais-valia, tendo em vista o quanto trabalhamos em casa, nos finais de semana, nos feriados... Pano para manga.
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Gostaria de sugerir que nós, professores, tenhamos uma interlocução formalizada, um grupo de estudos e trocas de textos e experiências. Para mim, isso é fundamental. Os estudos pós-coloniais, de alguma maneira inaugurados com a questão das comunidades imaginadas de Anderson (sem falar de Fanon e Levi-Strauss, que já discutiram raça e valores culturais), são meu material de estudo e pesquisa constantes. A África não apareceu na prova claramente, mas eu diria que o subtexto da questão Estado-Nação passa, necessariamente, pelas discussões: 1) da divisão, arbitrária e criminosa, geopolítica dos territórios africanos no período pós-colonial/imperialista; 2) da divisão de uma Nação-Brasil em Estados, pois se nação é um conceito abstrato que abrange uma comunidade, ainda que esta mesma comunidade não tenha consciência dos valores reais que a regem, como é o caso do Brasil, nação (por abstração, linhas verticais de parentesco cultural) e estado, que nos divide, como refletir sobre o paradoxo? São questões que poderiam perfeitamente vir à baila novamente nos exames do ENEM.

Notem que não estou aqui descartando a importância do estudo da gramática normativa como mais uma modalidade a se apropriar: isso enriquece o repertório dos alunos. Mas temos a gramática descritiva, a gramática pragmática, a gramática do português falado no Brasil, "tão sabendo"?
Dar nomes aos fatos da língua escrita, compará-los com as diversas modalidades da fala, saber transitar entre os registros linguísticos é importantíssimo (d'accord, Oswaldo?). Para mim, na redação, interessa-me que os alunos consigam se "desenrolar" diante do imprevisível, e isso só é possível se eu nomear - filosoficamente - classes de palavras que garantam coesão, clareza, coerência e linearidade dos textos que eles produzem. E debater. Todavia, o mais importante não é decorar (a não ser que seja exatamente como a origem da palavra sugere, "saber de coração") ou memorizar regrinhas mnemônicas (como fazem os cursos preparatórios), que os engessam e que podem escapar-lhes na hora de tensão de uma prova que é (?) decisiva. O preparo é para o que o mundo tem apontado como aspecto de pós-pós-modernidade: o inusitado, o imprevisto. E lidar com isso é muito difícil.
E mais: é absolutamente inadequado e irresponsável considerar as variações linguísticas como erradas. E vou mais fundo: a partir do momento que nomeamos um fenômeno linguístico (refiro-me a uma conversa que agora me foge com quem e quando tive), nós o legitimamos. Chamar "estrangeirismos", "anglicismos", "galicismos" e outros nomes mais apenas fortalece o poder da dinâmica formidável e revolucionária da língua/estudos de linguística - e as legitima como formas nossas, brasileiras. Sabe o "pequeno almoço" do português europeu? Impregnado de França. Legítimo.
A crítica que é menos boa diz respeito ao outro lado da moeda do que é bom: a escola, como entidade, instituição antiquíssima, está passando ao largo dos estudos contemporâneos - e a universidade também está na mesma - talvez porque receemos que nossos alunos não compreendam um texto mais "complicado". Eu acredito que eles compreendam sim e que devemos, antes de mais nada, arriscar e não subjugar os saberes deles. Em toda a minha experiência em sala de aula, encontro alunos com os quais tenho diálogos muito especiais, alunos que voam. Cabe a nós cuidar da altura desses voos e trazê-los ao mundo líquido e caótico - buscar a entropia, num mundo não de utopia, mas de distopias!!!! A prova da PUC foi uma surpresa em termos de conteúdo textual.

E jogo uma ponta do meu incômodo: onde estão as artes, além da literatura (Literatura é arte... Já passamos da hora de declarar a independência da Literatura e inseri-la no currículo das artes: a arte de usar a melhor palavra, da melhor maneira, aludindo à fala de uma poetisa amiga lá das remotas ilhas em que vivi. A arte de criar com palavras, como pintar, fazer música, malabares, esculturas, instalações. Desestabilizar o status quo). Aliás, acredito neste dever ético que temos: desestabilizar; tirar o sujeito da zona de conforto que o impede de crescer. Vamos ao confronto. Olhos nos olhos, com mais dúvidas que certezas - pois que certeza, para mim, é irmã da paralisia.

PS1: quase me esqueço de comentar o texto de Vargas Llosa, peruano, que viveu na Espanha e na França ("Saberes e utopias: visões da América Latina", fragmento de um artigo chamado "O país de mil faces" - eu me identifico muito com isso, porque sou uma migrada de Minas para o Rio!), que trata de pertencimento e que deu mote para a redação sobre a visão e as concepções do Brasil hoje, dialogando com Ignácio de Loyola Brandão ("Não verás país nenhum") e Oswald de Andrade (que gostava de ser chamado de Oswaldo, "O rei da vela"). Mas isso pode ficar pra outra conversa.


PS2: Não acho que a prova da PUC tenha sido o padrão ideal avaliativo. Ela é um pouco vaidosa, acadêmica, não conhece o abismo sobre o que falei antes... Isso serve para deixar claro que este texto não é uma apologia à PUC como exemplo sensacional (com alguma ironia) de "elaboladora" de provas de vestibular. Eu sou filha da PUC. Falta organicidade no debate intelectual (leiam Gramsci, Said, Derrida, Culler). Foram apenas considerações sobre a realidade que lá foi abordada! Uma espécie de desconstrução e desabafo. Que aguarda interlocuções!

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E do Seminário, segue o link:

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1088797317800189&set=gm.175813589425773&type=3&theater


sábado, 26 de setembro de 2015

Do IILP

 

Diálogo África-Brasil: Juca Ferreira e Mia Couto

by O IILP





http://www.cultura.gov.br/documents/10883/1197198/entrevista-mia-couto.pdf/461cdb3b-a93c-4354-8941-be40fb5846b0

Ares de mudança...

Foi bastante curioso reler as últimas postagens deste blog. Quanta dificuldade em sair de ST&P e não menos de voltar pro Rio. Confesso que ri de mim mesma, sem troça, mas com uma certa graça de me despir tanto publicamente em um momento tão difícil. De alguma forma, tudo o que escrevi serviu pra elaborar a saída de lá e a nova entrada no novo Rio que encontrei. Resolvi não rasurar as falas intimistas - ao extremo - e dar continuidade de outra maneira que, claro, não deixará de ser subjetiva, mas tentará ser mais objetiva no que diz respeito às pesquisas que tenho feito. E aproveitarei o espaço para divulgar eventos que tenham a África como centro de discussão. Seguem os primeiros.

http://nepa.uespi.br/

E mais um:

http://plataforma9.com/congresso/ii-coloquio-internacional-de-historia-da-africa/


E sobre vozes femininas:

http://milbaufrpe.blogspot.com.br/2015/08/informacao-sobre-inscricao-no-evento.html





sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Felizes 5 anos do Leitorado no Brasil em São Tomé e Príncipe!

Lembranças!

https://www.youtube.com/watch?v=RKIeaenTiYE&feature=youtu.be


Um texto no fundo da gaveta


O primeiro leitorado do Brasil em São Tomé e Príncipe (STP) completará 4 anos em setembro de 2013. A instituição que o abriga é o Instituto Superior Politécnico (ISP), única IES pública no país. O ISP possui um Departamento de Línguas, dividido em núcleos de língua portuguesa, inglesa e francesa. O Núcleo de Língua Portuguesa (NLP), de que sou membro, conta com 12 professores por semestre letivo, incluídos os leitores do Brasil e Portugal. Entre os professores, há os que se especializaram em linguística e ensino do português como língua segunda, fruto, em geral, da cooperação educacional com universidades portuguesas. O leitorado do Instituto Camões se ocupa das disciplinas relacionadas à metodologia do ensino do português e introdução aos estudos da língua portuguesa; o brasileiro, da literatura brasileira e - em função da carência de professores formados na área – da literatura dos países africanos de língua portuguesa. Além das atividades docentes, há projetos culturais junto ao NLP e, no caso do Brasil, em parceria com o Centro Cultural Brasil-STP (CCB-STP).

É nesse contexto que inicio minha viagem - mais precisamente em setembro de 2009, quando comecei a aventura cultural e linguística por estas terras irmãs. Esfinge a ser desvendada, o ISP se oferecia ao diálogo linguístico, cultural e histórico com o Brasil, a difundir-se por alunos e professores – em cujo imaginário, até então, novelas televisivas e algumas canções de consumo e o futebol consistiam as únicas referências de nossa terra. Para alguns, ressalve-se, poucos textos literários eram de conhecimento, normalmente apresentados em aulas de literatura brasileira lecionadas com sotaques diversos dos nossos. A impressão de um acento meio mineiro, meio carioca causou nos alunos efeitos inesperados.

Tive a oportunidade de me reaproximar das literaturas africanas de língua portuguesa, que, irmanadas à brasileira, inundou salas de aula, o anfiteatro do ISP, o auditório do  CCB-STP - e a vida dos alunos, que passaram a se interessar pelos estudos literários com uma força nunca antes vista pelo NLP. Atribuo tal interesse à identificação dos são-tomenses com nossos escritores, majoritariamente os das décadas de 1950 em diante, que também foram os grandes influenciadores dos autores africanos com que trabalhei em sala de aula. Nesse sentido, sempre estabeleci paralelos entre a construção de nossa identidade e as lutas pela liberdade dos países africanos. Bebemos todos na fonte – de Gonçalves Dias a Guimarães Rosa, de Baltasar Lopes a Luandino Vieira, de Mia Couto a Conceição Lima – e, assim, nos apropriamos do discurso literário em português e da nossa língua portuguesa com afinco, desejo e afeto. Conceição Lima, o atual e universal grande nome da literatura são-tomense – ou africano, ou europeu e brasileiro, mereceu do leitorado e do CCB-STP, o reconhecimento devido que merece o autor da terra que recebe o leitor, que necessariamente se encanta com o até então desconhecido. Ganho pessoal – já que pretendo focar meu doutorado no estudo desta grande poetisa; ganho para o Brasil, que vai reconhecendo o grande talento de Conceição Lima, pouco a pouco se tornando figura próxima, indispensável ao diálogo cultural que mantemos com a África.

Nossa experiência cultural, por outro lado, consolidou-se aos poucos no imaginário dos alunos, amalgamada à cultura local. Exercitou a reinvenção identitária; acendeu criatividades; potencializou talentos; redimensionou o foco de interesses acadêmicos – pois o Brasil passou a ser visto e procurado como produtor de saberes novos, repletos de afinidades com STP. Passou-se a olhar nosso país como realidade possível e como interlocutor cultural fértil e acessível; a identificar as similaridades das variantes linguísticas brasileiras e são-tomenses. Fechou-se a aparente fenda que outrora se impunha: o mar imenso que nos separa tornou-se ponte cultural e linguística, em franco processo de desvendamento e irmanação.

O NLP (e o ISP, em nível de seu Conselho Científico) tem se empenhado em atualizar seu programa geral, a fim de promover efetiva integração entre os alunos e sua realidade sociocultural. Em 2009, os programas de literatura ainda não haviam sido discutidos e adequados aos interesses efetivos do alunado – ou às suas carências, trazidas dos níveis anteriores, em leitura e escrita, por exemplo. A maior preocupação tem sido aproximar os estudantes futuros professores (e os alunos que já lecionam nos ensinos básico e liceático) do mundo acadêmico, da produção de saber, o que poderá levar, finalmente, à preparação dos programas educacionais pelos próprios são-tomenses, ainda vinculada a projetos das escolas portuguesas. A mudança, gradual e contínua, pensada e estruturada pelo NLP, já causa efeitos positivos, como a inserção dos discentes em projetos teatrais e concursos de leitura e escrita, idealizados pela leitora de Portugal, também preocupada em criar um ambiente acadêmico democrático e solidário.

Quanto aos projetos levados a termo pelo leitorado do Brasil, tenho a preocupação de colocar os alunos em contato direto com a cultura brasileira, a fim de que ganhem uma referência, até então praticamente desconhecida, para suas articulações de pensamento. Tal ênfase justifica os programas que apresento no decorrer dos anos: conversas com intelectuais e artistas brasileiros, exibição, em sala de aula, de filmes e documentários que retratam a nossa tradição literária, musical, plástica. Ademais, reitero constantemente a importância fundamental da África para a construção da própria identidade brasileira, uma questão que ultrapassa os meros limites étnicos.

O CCB-STP tem sido fundamental para a efetivação dos projetos culturais que acontecem no ISP, pois, em articulação direta, leitorado brasileiro e embaixada discutem a relevância dos programas apresentados bem como suas identificações com STP. Vimos, no decorrer dos anos, trabalhando em franca parceria, devido, em certa medida, aos interesses do corpo diplomático em apoiar de forma mais ostensiva o trabalho do leitorado.

STP e Brasil continuam, dessa forma, um projeto a que chamo “identificador”, em que posso atuar, de maneira especial, como um ponto dinamizador. Estar vinculada ao mundo acadêmico como leitora no ISP me proporciona abrir diálogos adormecidos, cultivar identificações esquecidas, debater questões que considero fulcrais para o desenvolvimento da interlocução entre a academia e a política, entre STP e o continente africano, entre STP, Brasil e Portugal; enfim, entre todas as culturas unidas pela nossa língua comum. Creio na academia como espaço privilegiado e adequado para pensar nas relações que tenho comigo mesma e com a alteridade, na constante adequação de programas educacionais à realidade local, o que me faz pensar na minha posição como professora estrangeira, que se posta além da minha realidade cultural subjetiva. Trata-se, ao final e ao cabo, de uma posição política: apresento-me, em uma instituição de peso em STP, como intelectual brasileira, que se baseia em princípios democráticos e pluralistas, que levam à defesa do direito de expressão de todos.

É com muita gratidão que me despeço de STP, por ter podido trocar tantas e tamanhas experiências, por ter sido possível ver-me sob outro ângulo, ver e compreender o Brasil a partir de novo lugar de enunciação, e, finamente, por ter deixado, entre alguns alunos, o legado do desejo: desejo de conhecer mais o Brasil, espaço agora concreto de relações entre eles e nós, tal como STP foi para mim durante esses anos de permanência. Desvendemo-nos, assim, sempre.


Por mim.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Cerzir

"Mas eu sei que você virá, você virá e passearemos pela marginal de mãos dadas enfrentando o sol da Baía com os olhos limpos das névoas da saudade." (da minha amiga S. para mim, hoje.)
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Então, depois de semanas nebulosas, entre raios e tempestades, estive frente a frente com os mais abomináveis atos que uma pessoa pode cometer. Mas antes que se pense que isso é ruim, eu já explico que não, não é ruim. Eu tresli o Grande sertão: veredas, que é minha obra-chave pra todo momento da vida, e ali estão claros os nossos limites, e a nossa mais pura essência (com licença da palavra): viver é perigoso, e ser gente é perigosíssimo! É preciso sempre ter em mente que o tempo inteiro o que há de mais humano em nós pode derramar... e não adianta depois chorar sobre o derramado. O que foi, deixa estar. Não se conserta. O que se tem de fazer é cerzir a própria alma. Chega uma hora em que o ego tem de ser o centro de cada "eu", e topar com as dores, as dificuldades, e as coisas pérfidas (as que praticam contra nós e as que nós praticamos contra os outros e, mais uma vez, contra nós mesmos) não é exatamente ruim. É, muitas vezes, absolutamente necessário para nos compreendermos nessa difícil condição humana, que tentamos incansavelmente dominar, mas que no fundo, tem uma fragilidade imensa, da qual sequer damos conta às vezes. É como conhecer o médico e não saber que nele há o monstro. A linha que os separa é muito tênue. Escrever ajuda a elaborar os "erros", os arroubos, e entender os acertos, olhar mais para eles. Fazer um inventário de coisas gostosas vale a pena, mas não esquecer o inventário das coisas que nos fazem ser humanos é fundamental pra reconstruir o caminho que escolhemos.
E deixemos de filosofias vagas...
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Num intervalo de sossego matinal, peguei o livro do Michel Laban que contém entrevistas com escritores de São Tomé e Príncipe, e me deparei com as fotografias deles - uns que conheci, outros que não. E não consegui ler, porque as imagens me deixaram com aquelas saudades atlânticas... Fechei o livro, entendi que ainda não consigo remexer nas memórias são-tomenses, respeitei o meu sentimento e fui me deitar um pouco. Sonhei que algumas coisas que não aconteceram em São Tomé tinham acontecido. Sonhá-las foi uma forma de realizá-las. Que interessante: eram letras em cima de uma superfície muito grande, muitos papéis, e junto disso tudo, uma voz que lia poemas sobre as ilhas. Despertei, gravei na memória o sonho, tirei da frente dos meus olhos os livros que me deixam com saudade, e saí.
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Descobri, finalmente, uma livraria pertinho de mim. Ando alguns minutos, e lá estou eu, zonza entre tantas obras. Optei pela crônica: texto rápido, na maioria dos casos, fácil, e às vezes até lúdicos. Mas a minha mão sempre pára em Clarices e Caios... Dessa vez, peguei as "Pequenas epifanias", subi mais um lance de escadas na livraria, pedi um café, um cheese cake, e li só o prefácio, que por si só já é uma graça! Escrever é uma forma de libertação, mas ler também: dá uma sensação de liberdade absurda, de saber-se no mundo e permitir a fruição estética. É preciso alimentar o espírito.
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Agora, de volta a casa, tento esboçar essas linhas, e nunca considero que estão boas. No entanto, gosto de escrever e de ler depois o que escrevo, ainda que não me apraza (essa palavra existe?). Escrever é uma forma de entender o humano, e de me reconciliar comigo mesma. Falar das saudades de São Tomé e dizer que ainda não consigo mexer nas memórias é uma forma de reavivar as memórias com doçura, de trazer pra perto de mim um pouco do cheiro daquele mar, das mãos das pessoas que amei e tirar as névoas da saudade. Falar das nuvens cinzas das últimas semanas também é uma forma de afastá-las, de me culpar menos por ter atitudes demasiado humanas, de pensar mais antes de extravasar essa humanidade de forma negativa.
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Enfim, cerzir, cerzir o espírito, reconciliar-me comigo e com o mundo, compreender o retorno e o recomeço da vida. Aceitar a novidade. Ver as fotos dos meus escritores e outras fotos dos momentos felizes que passei nas ilhas, não apagá-las num átimo de raiva ou tristeza. Deixar aqui as lembranças. Construir sobre elas um caminho firme. Ir, pausadamente, enxergando o centro de mim mesma, e me respeitando mais. Deixar o tempo fazer seu trabalho impecável! Deixar que a paciência venha inundar a alma cansada e apressada. Permitir que o novo invada cada poro do corpo, e me refaça. E que com isso eu me reconheça outra vez.
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Essa é a tarefa diária.